domingo, 27 de maio de 2012

XIII - Pra quê?


Não demorou muito para que eu perdesse a noção de tempo em meio ao vazio negro que logo me dominará, só tinha certeza de que muito tempo já correra de mim, pois por mais que não soubesse se era “dia” ou “noite”, o cansaço vinha e, em momentos periódicos, eu, literalmente, apagava, envolvido pelo frio abraço do intangível, que levava-me adiante sem que eu pudesse impedir. Assim, vagarosamente, o tempo foi escorrendo de mim, o tédio e a carência aumentando e a sensação de autossuficiência me irritando. Sentia falta de sentir fome, sede, necessidade de respirar... Enfim, viver. O tempo não me furtara apenas sentimentos, mas, também, levava de mim meu antigo físico, todavia, não de modo ruim.
Eu cresci muito durante todo esse tempo, já não parecia mais a lagartixa com asas que todo filhote de dragão parece, agora eu estava mais encorpado meu pescoço crescera, engrossara e tornara-se mais sinuoso, formando um “s”, os músculos das minhas pernas desenvolveram-se, porém, não muito, já que não tinha como eu exercitá-los. Mas, de fato, a mudança mais notória estavam em minhas asas, calda, face e costas. Minhas asas tornaram-se quase três vezes o tamanho do meu corpo e ficaram muito poderosas, devido ao continuo exercício de “voar”. Minha calda, que me servia como um leme durante o trajeto, ficara, também, musculosa e poderosa, a crava cristalina também crescera e, do meio dela, diversas pontas afiadas brotavam. Meus chifres cresceram e começaram a se escamar, tornando-se mais mortais, os traços da minha face ficaram mais robustos, explicitando meu gênero,  masculino e, partindo da espícula de entre dos meus olhos até a mais próxima da clava, em minha calda, que já começaram a cair, os pelos tornaram-se mais brandos, finos e acinzentados.
Darky, como eu apelidei o “espírito” que vivia dentro de mim, já não me atormentava desde que desisti de tentar me matar, parecia estar em um sono profundo, apesar de eu suspeitar de que era ele quem provocava aquela sensação de autossuficiência.
E o tempo escorria, vagarosamente.

Então cheguei a uma estrela, na verdade, três, uma principal e outras duas a orbitando. O calor delas inundavam seu campo gravitacional e muito além. Cerca de três planetas eram visíveis daquele ponto em que me encontrava. Um deles chamou-me a atenção, pois um brilho fraco brotava dele, como se ele tivesse sua própria estrela interna. Sem mais esperar, dirigi-me a ele, curioso e, de certo modo, esperançoso, em poder, talvez, dar fim a essa viagem a esmo.
O planeta, que era o último dos três que meu campo de visão alcançava, era, àquela distância, extremamente belo, pelo que se era possível discernir por entre o estridente brilho do planeta e das nebulosas que ofuscavam a paisagem abaixo delas. Porções soberanas d’água separavam porções, também imensas, de terra e, nesta, em alguns pontos mais isolados, grandes porções de verde intenso destacavam-se da única coisa que empobrecia aquela paisagem, um cinza opaco, frio e monótono que cobria a maior porção terrosa do planeta.
A primeira vista estranhei, não nego. Nunca, na natureza, eu tinha visto tanto cinza no mesmo lugar, nem sequer nos nossos vilarejos, na antiga Drungsdom, formados por rocha bruta, era quase impossível tanta rocha,  na superfície,  agrupada e em tamanha quantidade, aponto dee formar aquele borrão.
Aproximava-me cada vez mais e cada vez mais era possível discernir os detalhes dele. O borrão cinza logo tornara-se uma massa desinforme de complexas construções, se comparadas às rústicas construções de Drungsdom; edifícios altos arranhavam a atmosfera, outras construções, relativamente, mais rasteiras, transformavam a paisagem em algo mais heterogêneo, quebrando, casualmente, o excessivo cinza. Porém, algo mais chamava a atenção e acizentava ainda mais o evoluído planeta, uma densa fumaça cinzenta, semelhante a que nós, dragões, expelimos ao soltarmos baforadas de fogo, tornando ainda mais obstruía a visualização do planeta.
Então, aproximei-me o suficiente do planeta, a atração dele começou a me puxar e minha sensação de autossuficiência começou a enfraquecer. Com a fome, cansaço e a necessidade de respirar voltando, descidi, então, lançar-me no planeta, abandonando-me à gravidade deste, como um meteóro que torna-se meteoríto ao ser admitido pelo planeta.
Pra quê?
Fui recepcionado por uma intoxicante nuvem de gás, tão densa e tóxica que cheguei a sentir, de leve, aquela bendita sensação de autossuficiênci voltando, além de ter visão totalmente obstruída, passando, então, a cair as cegas. Subtamente, já estava fora da nuvem negra e, finalmente, consegui observar, com maior riqueza de detalhes o que aquele tinha para oferecer.
Levando em relação a posição dos sóis, estava a iniciar-se o dia naquele local em que entrei. E por esse motivo, as vias por entre aquelas edificações estavam desertas, com exceção de alguns animais de rotas errantes e várias máquinas complexas e esquisitas, e diversos pontos luminosos provocavam o brilho que me trouxera até aquele pacato planeta. Sem muito mais o que fazer, já que o pouco brilho da aurora impedia-me de observar muito mais detalhes do lugar, eficientemente, direcionei-me ao topo de uma edificação próxima e resolvi ali aguardar até que os sóis iluminassem o suficiente a paisagem.
Logo, ao longe de onde eu estava, um estranho badalar metálico chamara-me a atenção. Não sabia bem o que ele indicava, mas, julgando o que ocorrera em seguida, ele certamente marcava o início do dia.
A vida começou a brota de dentro das edificações. A vida, nesse caso, mostrara-se como estranhos seres altos, com o corpo coberto por densos, porém belos, pelos, estes, aliás, de diversas cores que iam de aceitáveis, como pretos, caramelos, cinzas, a absurdas, como vermelhos, roxos, verdes; possuíam um focinho saltado, porém a face, num todo, era achatada, as orelhas possuíam diferentes formatos, de simples, destinadas apenas a audição, à grandes e pomposas, o que, provavelmente, era sinônimo de beleza dentre eles; além de uma longa e bela cauda, muito peludo, em alguns. Lembravam alguns animais de Drungsdom, ditos felinos, porém estes eram bípedes e mais robustos que os felinos de Drungsdom.
Não nego, fiquei estupefato com a visão daqueles animais tão exóticos, eles chegavam a ser mais diferentes que os animais-rosados-sem-pelos, apesar de que eram mais belos. Fiquei ali durante algum tempo, sobre aquela rocha estranha e plana, observando o movimento daqueles seres excêntricos. Eles locomoviam-se tanto andando quanto em suas engenhocas interessantes que lembravam frascos grandes e fechados com rodas.
Então, desci descer.
Pra quê?
Pousei, suavemente, no chão e tentei aproximar-me do grupo mais próximo. Deixei um leve ronronar escapar da garganta (Sim, eu ronrono, mas lembra mais um rawr tremido a um purr) e deixava a cabeça inclinada procurando demonstrar ingenuidade e curiosidade. Porém, quanto mais eu tentava contado, mais eles afastavam-se de mim, temerosos, muitos corriam gritando, e pela freqüência aguda dos gritos, deduzi que eram, em grande parte, fêmeas, coisas difíceis de entender. Então resolvi tentar outra abordagem, fechando os olhos e abrindo a boca, liberei doces rawr’s seguidos de graciosas labaretas, como luzes de um show. Para mim aquilo parecia muito belo e digno de gracejos. Esperava que eles fossem gostar e aproximar-se de mim, porém, quando voltei a abrir os olhos, não havia mais ninguém na minha frente, no mais alguns deles correndo, mais ao longe.
De repente, senti algo rapidamente enlaçar e apertar o meu pescoço, logo senti o Darky acordar, porém, antes que nós pudéssemos demonstrar quaisquer reação, um poderoso impacto fora infligido sobre a minha nuca.
E desmaiei.

Não sei dizer bem quanto acordei, pois a escuridão do lugar era tamanha que se misturava à da minha coma. Não, também, sabia onde estava, e sequer cheguei a descobrir mais tarde, afinal. A única coisa que eu conseguia discernir era uma passagem bloqueada por algum objeto que parecia flutuar de forma deixar leves feixes de luz brilhar em suas bordas. Mais tarde descobri daquele objeto era porta.
Após um longo e incerto período, o feixe de luz à minha frente aumentou e banhou todo o lugar, ofuscando minha vista, momentaneamente, desacostumada à claridade, seguida de um vulto, volumoso e dotado da mesma cauda que os seres que eu observava possuíam. Ficou na porta daquela pequena sala e disse algo em voz alta, porém não consegui entender nada do que ele dissera. Então, ele repetiu.
– Levanta-te! – Desta vez entendi, perfeitamente, o que ele dissera, apesar de não saber bem como aquilo acontecerá. Aparentemente, não fora o Darky, já que não conseguia sentir qualquer diferença no meu ser que indicasse a ação dele, porém também não conseguia encontrar outra explicação.
– Levanta-te, besta alada! – Ao soar deste terceiro berro o encanto da surpresa de ter entendido o que ele dissera quebrou-se e fora substituído pelo mais puro medo do que ele poderia fazer se eu não o obedecesse, sendo assim, levantei-me, mantendo-me em silêncio.
– Finalmente! – A raiva do desacato transparecia em sua voz – Agora, venha comigo! – Dizendo isso, ele virou-se de lado, liberando um estreito por onde eu pudesse passar. Eu, vagarosamente, movi-me em sua direção. Na verdade, movia-me até devagar demais, como se tivesse acabado de terminar um trabalho exaustivo e estivesse locomovendo-me para um lugar tranquilo e confortável para poder dormir.
Esperava que eu fosse ser guiado a algum lugar, mas, em vez disso, fui posto a dianteira de um pequeno grupo daqueles estranhos seres, como se eu fosse o capitão de uma expedição. Nesse momento já era possível analisar o que me cercava: o vulto que berrara comigo, mostrara-se, certamente, mais um daqueles estranhos seres, possuía os pelos num tom alaranjado, os membros bem treinados e trabalhados, porém o corpo, num todo, era volumoso e sua expressão era séria e brusca. Além dele, os demais seres do pequeno grupo, também membros da mesma raça, ambos muito semelhantes ao primeiro, porém, possuindo menos pompa no semblante. Todos possuíam uma ferramenta cumprida e larga, terminada em três afiadas e pontiagudas pontas, ou, como já deves ter percebido, tridentes; as ferramentas foram apontadas para o meu pescoço e, periodicamente, empurradas contra ele, para que eu caminhasse adiante.
E assim seguimos, numa, mutuamente, solene marcha. Conforme avançávamos, o cenário ao redor parecia, simplesmente, sofrer uma metamorfose em questão de passos, as grandes edificações cinzentas rapidamente deram lugar a verdejantes matas e um solo mais arenoso, porém, ainda desse jeito, a paisagem esbanjava formosura e esplendor.
Certamente você deve estar pensando agora “Como assim?”, e eu não te culpo por isso, afinal, depois de conviver com a tua espécie, humano leitor, eu descobri que algumas coisas não fazem sentido em sua realidade, como o fato de uma paisagem, simplesmente, mudar, em questão de alguns meros passos, principalmente, na marcha lenta em que estávamos, e que tridentes são coisas um tanto quanto antiquadas para uma civilização, aparentemente, evoluída como aquela. Mas logo, logo, entenderás, garanto-te.
Subitamente, então, os tridentes foram retirados do meu pescoço e colocados em ‘x’ à minha frente, simbolizando que eu parasse. Levantei, pois, a vista pela primeira vez, desde que a caminhada começara, a fim de saber o motivo da parada. Estávamos de fronte a um todo enfeitado trono, cercado por ouro, árvores e terra e, sentado neste, encontrava-se mais um daqueles grandes felinos. Este era de pelagem vermelha marcada por diversos símbolos em amarelo por todo o corpo, ou, ao menos, por toda a parte visível deste que, aliás, era vasta já que ele trajava muito poucas vestes, se comparado ao grupo que me levara até ali, resumia-se a uma singela tanga sobre as partes intimas, porém, ainda que pouco, está aparentava valer muito mais que tudo o que os soldados sustentavam. Era igualmente robusto, porém aparentava possuir mais pompa e prestígio.
Observei-o por alguns instantes, assim como fizera com relação a mim. Ainda não estava acontecendo o que estava acontecendo e tentando digerir todas aquelas informações quando, de repente, num movimento tão rápido que ele parecia mais ter teleportado a si próprio, ele sumiu de seu trono e reapareceu a escassos centímetros do meu focinho, pendurado, de ponta cabeça, olhando-me ainda mais fixamente que antes.
– Vejamos o que temos aqui? – Dizia dando pequenos petelecos  nos meus chifres – O que faz aqui, pequenino?
Apenas balancei a cabeça, procurando simbolizar que não tinha nada a fazer ali.
– Nada? Mas porque, então, tu estas aqui e estavas a assustar o meu povo? – Disse isso pondo seu focinho mais próximo de mim, de modo ameaçador.
Encolhi um pouco com o tom e a aproximação ameaçadora dele e, mais uma vez temeroso, e não sabem como explicar-me sem palavras, falei, não me importando se ele iria ou não me entender.
– Me-me desculpe, eu-eu não quis assustar ning-- – Fui obrigado a cortar a fala. Agora aquele felino transformara seu semblante de impassível e descontraído para um que denotava o mais puro pavor e pânico. Com um movimento tão ágil quanto o anterior, ele desceu de onde estava pendurado.
– Espera um pouco ai... Eu conheço esse teu sotaque. Tu és de Drungsdom, não é? – Mal conseguira acenar com a cabeça que sim e ele voltara-se para ou soldados e estes já sabiam que tomariam um sermão apavorante. – Retirem-se daqui nesse instante, seus incompetentes! Não sabem o quão prestigioso é a visita de um amigo dragão para tratarem-no assim?! – Ordenou ele com reverberante brado e os soldados saíram aos tropeços. Ele segurou o que estava mais próximo de mim antes que este pudesse deslocar-se e sussurrou-lhe algo inaudível. Logo após este fez uma reverencia e pôs-se a correr.
Fiquei a observar os soldados correndo para longe, tentando entender o que estava acontecendo. Quando voltei a olhar para frente tive de jogar-me para trás por conta do susto que levei. Aquele felino que dera o sermão nos demais estava agora tão próximo de mim que lhe tocaria o focinho se não fosse a minha reação.
 – Oh, que indelicadeza a minha! Deixe que me apresente, sou o Rei Hango Sha, reino sobre toda a porção sul do continente de Musu, mas isso você já deve saber, não é? – A pergunta foi retórica e seguida dela ele soltou uma animada gargalhada ao ar. Dei graças por isso, já que sequer imaginava o porque de ele ter mudado o tratamento para comigo de repente, quanto menos quem era ele, ou aquele reino. – Então, diga-me, cari dragão, o que o trás aqui nesse magnífico dia? E o que houve com os anciões? Há muito não temos notícias de vosso povo.
Mais uma vez vi-me encurralado. Não sabia como explicar-lhe que Drungsdom nem mesmo existia mais, ainda mais com ele olhando-me com aquela expressão tão anciosa.
– Senhor, o banquete está pronto – O alívio tomou conta do meu corpo mais uma vez quando aquele soldado que havia saído correndo por último retornara com a informação. Fiquei um tanto quanto surpreso, também, com a velocidade com que o soldado dera a informação sobre o banquete e o mesmo fora preparado.
– Hum... Certo. – Estava claro, em sua voz, que ele não gostara de ter sido interrompido – Acompanhe nosso ilustre convidado, portanto, e logo me reunirei a vós. – E, dizendo isso, o rei sumiu na árvore logo acima.

Caminhávamos pela mesma via pelo qual eu fui levado até o rei, porém, agora eu podia andar livremente, sem um tridente no meu pescoço e sem ser forçado a andar, o que me proporcionou admirar a paisagem melhor. O verde daquele lugar era tamanho que eu mal podia acreditar, principalmente, pelo fato de ele estar no meio de um borrão cinza, borrão este, aliás, que eu não conseguia avistar.
Quando já havíamos nos distanciado o suficiente do trono do rei, dirigi a palavra ao soldado.
– Desculpe-me... – O soldado não virou-se, porém soltou um grunhido em resposta – Eh... Pode ser meio estranha a pergunta, mas... Onde estou?
Embora tentasse esconder, o soldado deixou transparecer um pouco de surpresa com a minha pergunta.
– Tu estás no reino de Cerôna, o maior de todos os reinos do planeta Ono, localizado no continente de Musu, o principal continente de nosso planeta. – Após essas informações ficou claro a surpresa do soldado, eu estava no ponto mais importante daquele planeta e não sabia.
– Hm... certo, e... o que são vocês? – Desta vez o soldado virou-se, visivelmente, surpreso e espantado.
– Desculpe, mas como Vossa Senhoria vem ao nosso planeta assim desinformado? – Perguntou ele, intrigado.
– Eu-eu, hã... Eu vim para cá por acaso... – Respondi o mais rápido que pude.
– Por acaso? Hm... – Senti minha garganta secar enquanto ele refletia a cerca da informação – Tudo bem, então – E meu alívio ao ver o sorriso em seu rosto – Nós somos oriundos dos Verinades – São felinos, humano, felinos – E destacamo-nos destes irmão menos desenvolvidos por nossa inteligência e habilidades manuais, tornando-nos superiores e desenvolvidos. Como somos da mesma família, nossa espécie recebeu o nome de Verinades Felix ou Pumas, como preferimos ser chamados. Ficou claro? – Perguntou mantendo o sorriso anterior.
– Perfeitamente. – Na verdade, eu demorei um pouco para digerir bem aquela informação.

Logo nossa pequena caminhada chegou ao fim, já estávamos em meio ao borrão cinza. Não sei em que momento deixamos a vegetação para trás, pois estava ainda digerindo as informações que me foram dadas, porém, quando eu olhava para trás, não conseguia ver nada além de cinza, como se aquela vegetação toda simplesmente não estivesse mais ali.
Estávamos à frente de uma imensa edificação, porém esta não era cinza, mas sim branca com centenas de detalhes em dourados. As paredes da construção eram orladas por diversas estátuas, gigantescas, de seres muito semelhantes aos Pumas, porém emanavam superioridades e poder. Eram deuses. Todos portavam objetos estranhos, até mesmo a você, humano, garanto-te.
Jamais vira construção tão elaborada em Drungsdom, portanto fiquei paralisado admirando-a por alguns instantes. Mais tarde vim a descobrir que nada se comparava àquela construção e nenhum lugar do sem-fim.
Infelizmente não pude ficar ali por muito tempo, pois o soldado já se adiantara até a porta e estava a me esperar. Contrariando minha vontade de permanecer ai, admirando a construção, acelerei o passo até aproximar-me do soldado.
A edificação possuía um imenso hall, aberto a qualquer um que ali chegasse. Os enfeites eram visíveis por toda parte, um mais pomposo que o anterior. Havia um pequeno balcão num canto, onde alguns Pumas atendiam, apressadamente, os civis que ali chegassem. Na nossa reta havia duas imensas portas de madeira, extremamente, emoldurada. Caminhamos em direção a elas. Enquanto caminhávamos, os estalos das minhas garras batendo no chão, composto por uma espécie de pedra lisa, cheia de desenhos coloridos, chamavam a atenção dos que ali estavam. Vi alguns  encolhendo-se ao me verem, supus que fossem alguns dos que eu tentei amizade mais cedo.
Chegamos, então, nas portas. O soldado adiantou-se mais um pouco e empurrou-as, com as duas patas, abrindo-as.
Pra quê?

sábado, 10 de dezembro de 2011

XII - Que assim seja

Despertei em meio a um amontoado de pequenas pedras trituradas, ainda meio zonzo, porém, suficientemente, lúcido para ficar intrigado por estar vivo. Estou vivo?!? Como pode?! Aquela pedra deveria ter me dilacerado e não eu; ela...
Preciso mesmo responder? – Mais uma vez aquela voz voltou a perturbar minha mente.
– NÃO! Suma! Pare de me atormentar! – Berrei perturbado para o nada.
Um longo silêncio sucedeu aquela perturbação, só então reparei que tudo o que ele queria era me irritar e eu permiti.
Eu preferi manter aquele silêncio, imerso em minhas aflições, e assim permaneceu por um longo tempo, até que, em uma moita próxima de mm, o ruído de um galho partido-se, arruinou a paz do ambiente. Instintivamente, voltei-me para a moita esperando por alguma ação, seja ela de ataque, seja de fuga. O que não aconteceu.
Estranhando, fui em direção donde viera o barulho, uma moita média, de coloração azulada e alguns ramos avermelhados, mexia-se mesmo sem vento e possuía um formato exótico que lembrava um animal. Quando tentei olhar no meio dela, ela moveu-se e correu de mim. Que raios é isso? Aquilo era alguma espécie de animal, o qual, até hoje, não sei de qual se trata, afinal nunca mais voltei lá.
O susto fez-me recuar e tropeçar em meus passos. Aproveitando o ocorrido, apenas rotacionei minha cabeça, poupado as energias, e observei as demais moitas e arvoredos; como eu esperava, todos estavam se movendo como aquele que eu toquei. De certa forma, aquela situação era bem interessante e um tanto engraçada, afinal aqueles “animais” eram bem desajeitados.
Permaneci ali, entretendo-me, por um bom tempo. Pareciam não me enxergar enquanto interagiam com o ambiente. Pareciam. Não demorou muito para que um deles investisse brutamente, com a cabeça, contra mim, escapei por muito pouco, porém, desnorteado pelo susto, não tive a mesma sorte com o que veio em seguida, assim como os que vieram o acompanhando, aproveitando a situação. Apanhei muito antes de conseguir ajeitar-me para, então, esquivar das investidas seguintes.
Querendo não contra-atacar aqueles exóticos animas, procurei tentar cansá-los para ver se eles desistiriam e deixar-me-iam em paz, esquivando-me deles. Mas, eles eram tantos e tão persistentes, que quem acabou se cansando fui eu. Então desisti de trabalhar em solo e optei por voar ara longe deles, porém, fui novamente surpreendido, aqueles matos mostraram-se exímios saltadores, podendo alcançar minha altitude sem dificuldades, o que atrapalhou minha tentativa de fuga.
Não entrando outro meio de livra-me daquelas coisas e estando já fatigado e faminto, decidi, então, atacar. Investi com os chifres contra o mais próximo de mim, o qual veio de cabeça contra mim também. Ao o atingir, senti meu corpo inteiro estremecer, ao passo que senti algo se estilhaçar entre meus chifres. Quando abri os olhos e minha vista desembaçou, vi aquele que viera contra mim estatelado no chão, sem vida, seus companheiros, instantaneamente, pararam e começado a recuar, receosos. Aproveitando a chance, puxei ar para meus pulmões e rugi o mais alto que pude e, em resposta, a manada bateu em retirada.
Enquanto via-os sumindo no horizonte, meu estômago reclamava de fome, principalmente, pelo cheiro doce de sangue que começara a emanar do estranho animal aos meus pés. Entregando-me ao instinto de sobrevivência e, sobre tudo, meu corpo faminto, abaixei-me até o “arvoredo-ambulante-que-cheirava-a-carne” procurando sabe se ele tinha algo que, ao menos, lembrasse carne. Felizmente, apesar do gosto um tanto diferente, debaixo daquelas folhas todas, de fato, ele era constituído de carne.
Já anoitecia e eu, farto, comecei a sentir os efeitos do cansaço, ficando sonolento. Procurei, então, algum lugar, suficientemente, seguro para descansar e passar a noite. Não demorou muito até que eu entrasse uma caverna, inevitavelmente, similar à em que morei durante meus primeiros dias de vida. Foi impossível não me lembrar da minha, extinta, família e da dor de sua falta. Então, adormeci, no interior dela, aos poucos, encolhido em minhas memórias.

O dia seguinte tardou a começar mais do que eu estava acostumado, quando acordei ainda estava escuro e, julgando pela posição das diversas luas que orbitavam o planeta, era impossível determinar quanto demoraria para o início da manhã. Temendo ser pego desprevenido por alguma espécie de animal, preferi ficar dentro da caverna até o amanhecer.
Então é a isso que estou fadado?Ficar vagando por esse monótono planeta, como um pássaro indefeso, sozinho, pelo resto da minha vida? Que castigo cruel... – Pensei, irrelevantemente.
Pela primeira vez tive tempo para admirar a capa que eu havia ganho de presente de meu irmão, pouco antes de perdê-lo para sempre.Com alguns gravetos e folhas, que encontrei perdidos dentro da caverna, amontoados e uma fraca baforada de fogo, acendi uma rústica fogueira para iluminar a caverna. Ela era, curiosamente, bela, possuía diversas estalactites e estalagmites e, mais ao fundo, uma pequena e magnífica lagoa. Deixando a caverna de lado por um momento, voltei-me para a capa, observando cada detalhe bem trabalhado, os amarrilhos e, então, pousei o olhar sobre a magnífica pedra posicionada no meu peito e reparei que ela já era igual a quando Flame havia ganhado a capa, agora ela parecia com um yin-yang vermelho e preto com círculos laranja e azul, respectivamente. Flame não me contara isso e eu sequer conseguia imaginar como ele fundira a minha pedra à dele e, principalmente, naquele formato difícil de obter.

Mais tarde, pouco antes do sol nascer, resolvi banhar-me na lagoa da caverna. A água era, incrivelmente, refrescante e relaxante. Permaneci ali por um bom tempo, esquecido de todas as minhas preocupações.
Quando o sol já estava alto o suficiente para aquecer o ar, abandonei o meu abrigo para aspirar um pouco daquele ar que, mesmo um tanto fétido, era um tanto agradável, graças ao orvalho da manhã. As moitas do dia anterior estavam por ali novamente, deitadas, aparentemente, aproveitando o sol. Mesmo essa vida, a qual achei que teria de seguir, parecendo agradável e confortável, não era para mim, me incomodava. Eu precisava encontrar um meio de sair dali.
Sai, então, para uma caminhada, contornando os “animais-arbustos”, a fim de evitar qualquer novo conflito. Pouco além da caverna, encontrei uma calma praia, impulsivamente, avancei pela areia até o mar, mar o qual provei semelhante poucos anos antes, junto a minha família e outros dragões, divertimo-nos, mesmo mar que, por sua sedução, atraiu tantos para morte, naquele ataque surpresa dos ‘animais-rosados-sem-pelos”. Duras e dolorosas lembraças vieram com aquelas ondas. Mais uma vez permiti-me viajar em minhas lembranças e assim permaneci, mais uma vez, por um logo tempo.
Quando, novamente, sai do transe, uma pontada de perseverança brotou profundo em meu ser e, então, levantei a cabeça, mirando o belo céu claro acima, abri, vagarosamente, minhas asas e, com todas as forças que pude angariar, impulsionei o ar para baixo lançando-me ao alto. Prossegui com um violento bater de asas até o ar tornar-se mais rarefeito, planei por aquela altitude até sentir, novamente, aquela estranha sensação de autossuficiencia em meus pulmões, o que não tardou, para então deixar de vez a atmosfera do planeta.
Abandonar a atração que aquele planeta exercia sobre mim foi mais difícil do que eu esperava, apenas depois de muito esforço, consegui vencê-la e, mais uma vez, encontrava-me em meio ao sem fim negro pontilhado de minúsculas luzes. Ao meu lado eu tinha os sóis daquele sistema, atrás; o planeta em que eu estava e os demais que transladavam aquelas estrelas e, a minha frente, ao longe, estivera, a até pouco tempo, Drungsdom. Sem muitas opções, então, segui no lado oposto aos sóis.
“Como não posso abandonar essa vida, então melhor fazê-la valer cada instante.”
Tendo isso em mente, bati asas rumo ao inevitável desconhecido.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

XI - Não!

Agora eu estava definitivamente sozinho, em meio aquele universo gélido e escuro, salpicado de pequenos pontos luminosos. Já não encontrava mais nenhum motivo para dar continuidade a minha sórdida vivência, se eu pudesse da um fim, naquele mesmo instante, ao meu lamento, certamente o faria.
Ainda com os olhos inchados pelo choro, tentei avistar algo suficientemente mortal, para realizar minha vontade. Para minha infelicidade, não havia nada mortal, ou melhor, não havia absolutamente nada. Aquele local, se é que poderia ser chamado assim, era mais vazio que o próprio vazio.
Mesmo assim, continuei numa busca, frustrante, por um ponto final para meu ser. Novamente deixei as lágrimas rolarem, lágrimas de ódio, de frustração, de medo. Não agüentava mais ficar ali, eu tinha de ir para algum lugar, qualquer lugar que não ali. Deste modo, abri minhas asas e comecei a vagar para lugar nenhum, rumo ao sem fim. Era tão inconsciente de onde estava que mais parecia um corpo celeste, inorgânico, vagando sem rumo, que um ser que vive. Realmente, sentia-me assim.
Desanimadamente, imitei os movimentos de um voo normal e fui-me, universo a fora. A sensação de voar naquele vácuo era completamente diferente da de voar num ambiente normal. Com fracos impulsos eu ia muito longe, praticamente nem parava de deslocar-me e nem diminuía de velocidade, não sentia o vento sendo empurrado pelas minhas asas, de fato, mal sentia o movimento do bater de asas. Era como se eu estivesse sendo carregado em vez de estar me carregando.
Vaga pelo sem fim era, ao mesmo tempo, relaxante e atormentador. O tempo alongava-se, vagarosamente, enquanto enormes distâncias e, por conseqüência, minha antiga vida, eram deixadas para trás. Cada bater de asas era mais dolorido que o anterior, não fisicamente, mas emocionalmente, era difícil imaginar que tudo havia acabado, de repente.
Logo estava tão distante de meus antigos sóis que eles pareciam apenas duas estrelas comuns em meio de outras milhares. Agora eu estava perdido na escuridão, via apenas pequenos pontos longínquos independente de onde olhasse, pequenas luzes que presenciavam minha solidão. Naquele momento, desgastado por tantos acontecimentos seguidos, sem descanso e sem alimentação, eu já estava cansado de voar, além do mais, nunca havia voado tanto antes, por mais que grande parte do percurso não tenha sido tão desgastante. Minhas asas suplicavam descanso, meu corpo já começava a fadigar, ainda assim, não parei. Minha determinação em cessar aquela angustia era mais forte que o cansaço. Muito tempo se passou e muita distância foi deixada para trás.

Depois de tanto vagar, comecei a interagir com uma nova força, havia invadido o campo gravitacional de um novo sol, muito maior que os dois sóis que aqueciam Drungsdom, muito mais intenso e extremamente vermelho. Três grandes globos rochosos circundavam-no, vagarosamente. Ao avistá-los, uma nova carga de adrenalina rompeu barreiras até meu sangue e disparei em direção ao mais próximo.
Havia água em abundância nele, pelo que dava para ver enquanto me aproximava, muito verde também marcava parte da superfície do planeta. Mas, em grande parte, ele era cinzento e marrom, o que, para mim, parecia o ambiente perfeito.
Angariei minhas últimas reservas e infiltrei-me na atmosfera do corpo celeste, com muita dificuldade, mas entrei. No momento em que entrei em contato com o ar do planeta, senti meus pulmões esvaziarem e a necessidade de voltar a respirar, além de uma leve brisa acolher-me, agitando a túnica que Flame me dera mais cedo, a qual havia até me esquecido de que estava usando. O ar daquele lugar tinha um odor bem diferente do que eu estava acostumado, meio amargo, meio fétido, mas, ainda assim, era bom sentir meus pulmões enchendo e esvaziando novamente.
Apesar de agradável a chegada ao planeta, não deixei que aquilo interferisse em meus propósitos. Pousei, pesadamente, na superfície rochosa e, num passo descompassado, incômodo um pouco com a vestimenta, mas nada que atrapalhasse, corri em busca de algo que eu pudesse usar para por fim a mim, poupando minhas asas para um possível uso futuro.
O lugar em que me encontrava era rochoso, sem vida, porém havia poças razoáveis d’água por toda a parte. Ao passar diante de uma delas, reparei em meu reflexo e voltei para observar melhor. Uma fraca aura contornava meu corpo, conjuntos desiguais de pelos arrepiavam-se desde minha cabeça até a ponta de minha cauda, dando-me um aspecto maligno, a túnica que ganhei de meu irmão mais cedo agora continha pequenos rasgos, quase que insignificante, e parecia um tanto carbonizada, danos, provavelmente, reflexos dos últimos acontecimentos. Fiquei parado diante aquele espelho natural durante longos segundos, observando sem ver, meditando sem pensar. “O que me tornei?” Foi a única coisa que ousou perturbar meus pensamentos e o pior é que eu não sabia a resposta.
Nesse momento sentei-me, sem retirar os olhos daquele reflexo. “Eu sou um monstro... Agora entendo por que tanto me temiam...”. Sai do transe, repentinamente, e, sem sair do lugar, girei a cabeça quase que hemisfericamente, procurando o que eu fora atrás, mas aquele pacato lugar não continha nada mortal o suficiente, as poças eram rasas de mais, comparadas a mim, para tentar afogar-me, as pedras eram muito arredondadas, não conseguiriam perfurar meu coração dolorido. Minha desgraça apenas crescia.
Diante da falta de estrutura do lugar, fui obrigado, pela vontade, a levantar-me, novamente, para, então, deslocar-me a procurar de um lugar mais acidentável, abandonado, de vez, aquele meu medonho retrato. Aquele planeta parecia muito mais desértico conforme eu desvendava-o, não havia nada, senão pedras e água, já suspeitava que o verde que eu havia visto fosse apenas uma ilusão.
Percorri uma imensa distância até que a paisagem mudasse: agora a água predominava e uma singela vegetação despontava das beiradas dos grandes lagos. E minha chance também se mostrava agora. Sem muito refletir, joguei-me no primeiro lago do qual me aproximei.
Nadei o mais rápido que pude para que, se eu desistisse, não conseguisse emergir novamente. A água estava agradável e acolhedora, túmulo melhor eu não podia desejar. Entretanto, algo parecia ter dado errado. Ouvi uma voz distorcida e medonha berrar em meus pensamentos: Não!
Após isso perdi todo o controle sobre meu corpo; novamente não senti necessidade de respirar e nadei, involuntariamente, porém, conscientemente, até a superfície.
O que você pensa que esta fazendo? – Vociferou a voz em minha cabeça.
– Tentando por um fim ao meu sofrimento – Respondi para não sei quem.
Eu não vou deixar você me matar.
– Como assim te matar?
Vai dizer que você não sabe que você é? – Indagou relutante.
– Eu sou Helike Long, ou, ao menos, era... – Disse ainda abatido com os fatos passados à tão pouco tempo.
Como pode ser tão hipócrita! Você, ou nós, é pertencente a hierarquia mais poderosa dentre todos os dragões existentes, praticamente invencível, imortal, incontrolável. Você não é um mero dragão negro, e nem teria como, pois esses teus chifres são específicos da nossa hierarquia poderosa e eu sou a fonte de tais poderes, eu sou você, nós somos um. – Terminou num tom malicioso.
Aquelas palavras caíram como uma enxurrada de água gélida sobre mim, somando-se a minha atual angústia. Como assim ele é eu? Como assim pertenço a uma hierarquia a qual não tenho nenhum parentesco?
 Essa hierarquia, a qual você está negando, é diferente das hierarquias comuns. Felizmente, sou tão leigo no assunto quanto você. Vai ser interessante vê-te sofrer com essa dúvida. – Desta vez terminou com uma gargalhada maléfica que foi ecoando em minha cabeça até sumir.
Então o silêncio começou a torturar-me e permaneceu até eu quebrá-lo num movimento abrupto, não ia deixar tudo aquilo continuar, estava mais que decidido em me matar e, assombrosamente, senti certo prazer em imaginar a dor da fratura, do sangue jorrando, da vida se esvaindo, entretanto, não imaginei isso acontecendo comigo, no primeiro momento, mas com o ancião-mor de Linsgui.
Voei, atrapalhadamente, por conta do peso da capa molhada, a procura de uma pedra pontiaguda e, sarcasticamente, achei. Sem pensar duas vezes, novamente, lancei-me contra o ápice dela. Foi uma queda violenta, seguida de um impacto nocauteante.



Because this is me ₢ Helike Long

sexta-feira, 13 de maio de 2011

X – Inevitável confronto

      Eu estava em plena a formosa e bela Linsgui, a época em que as flores brotavam, as aves enchiam o céu com seus cânticos em busca do parceiro, o perfume das folhas novas das árvores impregnava o ar. Além do mais era época de nascimento dos filhotes que tanto esperavam em seus ovos quentes para que pudessem sair e conhecer o ambiente.
      Estávamos eu e minha querida fêmea, assim como muito naquele lugar, aguardando pelo fim do incubamento de nosso pupilo. Muitos que passavam por nós, olhavam-nos com certa repugnância no olhar, infelizmente, sabíamos o porquê.
      O clima estava muito agradável naquela manhã, a Linsgui emanava de toda a parte, novos sons enchiam o ar a cada instante, sinal das novas vidas que decidiam romper a casca de seus ovos. E nós continuávamos lá, aguardando, sendo bombardeados pelo olhares, de expressões fechadas, que passavam por nós.
      O dia foi passando lentamente enquanto nossos dois sóis ganhavam altitude à perspectiva de quem os observava. Cada vez mais grunhidos união se à sinfonia de sons do ambiente. Os anciões encontravam-se no centro da orla formada pelos ninhos rústicos, entoando bênçãos sobre os pequeninos que chegavam.
      A tarde chegou conjunta a uma série de nebulosas ameaçadoras, olhei para minha fêmea, que a esta altura já estava desgastada pela longa espera, e ela compreendeu o que me olhar quis passar: "Há chuva vindo." O número de nascimentos já havia começado a diminuir e, por conseqüência, a temperança começou a tomar o lugar da sinfonia grunhosa também.
      Logo os primeiros indícios de chuva mostraram-se e eu ergui minhas asas sobre minha fêmea e nosso ovo, para protegê-los da possível enxurrada que estava por chegar. Não havia mais ninguém lá, excetos nós e a água. Não demorou muito para que os raios rasgassem o céu acima de nós, eu e minha fêmea já estávamos pensando em nos retirarmos dali, apesar disso ferir os costumes do vilarejo. Porém, ao som do terceiro raio, a casca do ovo rachou, do topo a base e, seguindo o estrondo seguinte, um pequeno dragão negro, de chifres de um cristal azulado, irrompeu do ovo, grunhindo pelo susto do choque com a nova realidade.
      Finalmente nascera nosso Helike Long.

      Subitamente voltei a mim, senti uma energia estranha contraindo meu jovem corpo, notei, também, que não conseguia respirar, apesar disso não me fazer muita diferença naquele momento, pois parecia que meus pulmões estavam produzindo meu próprio ar, dispensando a inalação de um novo.
      Quando finalmente abri meus olhos a primeira coisa que eu enxerguei, ou melhor, tentei enxergar, foi um grande vazio, um breu sem fim. Pisquei meus olhos a fim de acostumar com a claridade, ou falta dela, e então consegui avistar inúmeros e imensos pontos de luz perdidos no sem fim. Ao girar minha cabeça tentando entender onde estava aviste os dois sóis que iluminavam Drungsdom, Culuon e Virenies, tão próximos como nunca antes. Foi então que dei conta do que se tratava, eu não estava mais em Drungsdom, mas sim, fora dele, no sem fim do Universo.
      Esforcei-me um pouco para tentar recordar e entender o que me levara até ali, mas havia tenta informação em minha cabeça que eu não conseguia organizar nada dentro de meus pensamentos, exceto por uma lembrança em particular, uma que eu tinha certeza não ser minha, a lembrança de meu nascimento.
      Era confuso imaginar que eu sabia como eu mesma havia nascido, não tinha como, eu nem sequer tinha conhecimento pleno de que havia nascido, quanto menos do que ocorrera antes disto.
      Era incrível como meus pais cuidaram de mim e ficaram ao lado de meu ovo o dia inteiro, até mesmo debaixo de chuva. Mas a lembrança, ainda assim estava muito nebulosa, continha mais pensamentos do que imagens. Não consegui, por mais que me esforçasse, distinguir meu ovo.
      Então, tudo sumiu, fui engolido por uma calmaria incomodante, que, somada a calmaria do Universo monótono e silencioso, chegava à insuportável.
      Subitamente, outro sentimento sobrepôs-se aos demais; um sentimento capaz de inquietar qualquer um: O medo.  Medo do desconhecido, medo do que poderia acontecer naquele lugar e medo de nunca mais poder voltar para Drungsdom, meu lar, que, naquela época, eu achava ainda existir.
      Então, instintivamente, tentei correr, correr daquele lugar, fugir do incógnito, entretanto, para minha surpresa e desespero, por mais que eu tentasse, freneticamente, deslocar-me, mal saia do lugar, isso se saia. Porém, durante minha atônita tentativa de sair do lugar, bati as asas, sem querer, e impulsionei-me para frente, pouco, porém muito mais do que antes enquanto tentava correr no vácuo.
      O alívio tomou conta de mim e aliviou a tensão em meu corpo assim que descobri como poderia me deslocar, contudo, logo foi subtraído de mim para dar lugar a um novo susto: Uma pedra enorme passou, flamejante, pouco acima de minha cabeça e jogou-me, rodopiando, longe. Ao olhar na direção de onde veio o rochedo avistei um amontoado de poeira e rochedos pairando no nada.
      Eles não conseguiram fazer nada e o resultado da fúria acumulada do meu pequeno Helike aumentava e tragava, monstruosamente, tudo que lhe aparecia pela frente.Meu macho e meu filhote vermelho estavam inquietos apesar de, visivelmente, controlando-se. "Vamos nos juntar ao Helike?" Sorri. Eles me olharam intrigados e tristonhos, mas concordaram. Andei até o mais próximo possível do meu filhote descontrolado e murmurei um pequeno encanto, que aprendi com minha mãe, sobre nós três. "Espero que um dia nos perdoe, pequenino.".
      Essa súbita memória estava mais nítida que a primeira e pude me ver, à minha frente, no centro de uma esfera negra de energia, que tragava tudo que encontrava, enquanto os anciões parar-nos. Ao fim vejo a espera crescendo até ficar imensa à minha frente e, então, mais nada.
      Quando recobrei meus sentidos e revi aquele, aparentemente, planeta esmigalhado. Apenas um pensamento atormentou minha mente: "Eu os matei, todos eles.". E irrompi em lágrimas.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

IX ‒ Incontrolável

O dia seguinte ao triste ocorrido, os pais de Helike não conseguiam nem sequer olhar para o pequeno, quanto mais tratá-lo mal para testar o encanto. Sendo assim, decidiram por pular para a maior provação possível de uma vez e pediram para que Flame mudasse sua atitude com o irmão para saberem se de fato teria dado tudo certo.
O jovem dragão ficou extremamente contrariado com o pedido dos pais, discutiu muito antes de, por amor, render-se ao pedido e decidir que iria maltratar seu irmão, quebrando a única amizade que lhe restara.
Todos sabiam muito bem que doeria muito mais no pobre Helike do que em qualquer um ali por terem de tratá-lo tão mal, entretanto, ou o faziam, ou a situação poderia ser muito pior, nesse caso não só pro pequenino, como pra todos em Lanshi, já que uma simples brincadeira de mal gosto poderia desencadear a fúria do espírito.
Entretanto, antes de tentar tratar seu irmão mau, Flame decidiu dar-lhe um último agrada, ao menos, esperava ele, um último agrado por hora, esperando que o encanto estivesse realmente atuando e efemeramente ele e seu irmão pudessem viver na harmonia de antes.
O jovem decidiu por dar a sua capa, quase que semelhante a que seu irmão ganhara no dia anterior, como uma espécie de tributo ao seu irmão que já tanto sofria e ainda mais havia de sofrer.
‒ Porque estas me dando tua capa, bro? Ela é tudo, pode ficar! ‒ Disse inocentemente Helike, recusando o presente.
‒ Você merece bro, além do mais, a tua rasgou. E também quero que a guarde como uma recordação de nossa união, já que, até mesmo a pedra da cota é uma mistura de nós dois. ‒ Disse Flame docemente, tentando evitar contra-argumentos.
‒ Mas... hunf... Ta bem, vou guardá-la com a minha vida, meu irmãozão! ‒ Disse Helike com um sorriso tão grande quanto podia caber em sua face.

Mais tarde, naquele dia, Flame e Helike saíram para brincar num campo próximo do lar, porém, relativamente, distante do vilarejo, aquele precisava começar a exercer o pedido de seus pais e, contrário à sua vontade, tratar mal o irmão, sendo assim, ele fingiu estar mal humorado ao sair com o irmão, como se não quisesse a presença deste, e ele notou que tinha algo errado.
Bro? O que houve? Porque estás tão emburrado?
‒ Não tem nada. ‒ Respondeu o irmão fria e rispidamente, mas no fundo, amargurado.
‒ Então porque tens andado assim? Até ontem estavas contente e amigável, agora até os insetos te evitam.
‒ Cansei de ser bonzinho e só me dar mal.
‒ Como assim? Eu te meto em enrascadas?
‒ Você acha que os meus pais gostam que eu ande grudado contigo, dragão.
‒ Hã... ‒ Deixou escapar Helike, meio sem jeito e já chateado ‒ Mas eles nunca te trataram mal por isso, ao menos nunca os vi fazendo isso.
Pego de surpresa pela argumentação, o jovem escarlate tentou disfarçar uma resposta ‒ É... É que você não chegou a reparar mesmo... Mas eles não gostam que eu ande contigo, assim como todos, te acham uma aberração e eu estou começando a concordar. Concluiu impiedosamente.
Aquelas palavras afetaram muito Helike, ele jamais esperara uma atitude tão cruel quanto esta vinda de seu irmão.
Com os olhos enchendo em lágrimas, ele pergunto:  ‒ Puxa, bro, porque estas agindo assim? Que deu em ti?
Com mais fúria que Flame queria, ele trovejou: ‒ Porque ninguém te ama, muito menos eu, cansei de bancar o bobo e tomar conta do pobre bebezinho aberração. Eu só tive dó de ti esse tempo todo, mas já basta! Não agüento mais ouvir teus lamentos infantis.
O pequeno vermelho só foi notar o quão bruto foi ao ver seu irmão partir em disparada, deixando um pequeno rastro úmido no ar causado pelas lagrimas que brotavam dos olhos do pequenino. ‒ Hei, Helike, espere! ‒ Correu atrás dele.
Helike via-se num frenesi de emoções depois das palavras do irmão, um misto de medo, dor, rancor e, sobressaindo-se, ódio. Ódio este que provaria a eficácia ou não do encanto do dia anterior, o qual causara essa dor no peito do pequeno ser negro.
Enquanto corri e as lagrimas escorriam por seu rosto, ele tentava deduzir o que estava havendo com seu irmão, ficou cerca de cinco minutos correndo e pensando, até que não aguentava mais e parou, arfando. Nesse meio tempo Flame alcançou-o e, ainda adotando uma postura robusta e cruel, rosnou:
‒ Onde você pensa que vai, dragão? Não há lugar em todo o universo que vá lhe aceitar, não tens para onde correr! ‒ Enquanto se aproximava, ele mudou o modo de andar para um estilo mais sutil e calculado.
‒ Para de me chamar assim! ‒ Berrou o pobre dragão quase sem fôlego e apavorado antes de começar a correr novamente. Dessa vez ele decidiu por usar um artifício mais eficiente e, abrindo as sinuosas asas, levantou um voo, lento, mas que ganhou velocidade rapidamente devido as grandes asas, aptas para voos rápidos. Viu seu irmão ficando pra trás num primeiro momento, mas este logo aderiu também ao voo para continuar a perseguição.
‒ Parar com o que, dragãozinho bobo?
O ódio pelo que seu irmão fazia crescia cada vez mais sobre Helike, como se quisesse dominá-lo, entretanto, o amor que alimentava pelo irmão, que fora ao intensificado com o tempo, ainda dotava-o da capacidade de conter-se. Ao menos por mais algum tempo.
Foi então que, subitamente, ele lembrou-se de onde estivera no dia anterior com seus familiares e até onde tinha a capa. Nesse momento ele virou-se para Flame e encarou-o, enfurecido, porém controlado.
‒ O que aconteceu ontem? O Que os anciões fizeram? Porque rasgaram minha cota? Porque vocês não fizeram nada a respeito? ‒ Indagou o jovem dragão negro desenfreadamente.
Seu irmão não esperava tanto essa reação, quanto a enxurrada de perguntas, porém, por afeto ao seu irmão, decidiu que ele merecia saber toda a história. E assim contou desde dois anos atrás, contou do porque de seus pais tratarem-no daquela maneira, contou desde quando sabia das coisas, contou dos treinamentos que os anciões lhes davam para dominá-lo.  Relatou cada fato até o dia anterior para o irmão, a fim de tentar amenizar a dor dele, já que, ele achava que o encanto já havia se provado eficiente. ‒ ... E ontem eles decidiram tentar lançar um feitiço sobre ti para tentar controlar esse lado sombrio teu e assim poderíamos cessar os mal tratos a ti, e voltaríamos a ser felizes. Quanto à cota, eles foram extremamente insensíveis a ti e a nós mesmo, não tínhamos como impedir. Eu estava tratando-te assim hoje para fazer o teste final sobre o encantamento, já que ele não havia sido usado antes e ninguém sabia se funcionaria perfeitamente; o que definiria como seria daqui em diante. Vendo que até agora nada aconteceu, a não ser tu terdes corrido, o encanto deve ter fun-- ‒ Ele foi forçado a cessar seu discurso assim que o irmão abaixou a cabeça e uma pequena aura esverdeada começou a emanar do seu pequeno corpo.
Desta vez parecia mais perverso e poderoso que as últimas vezes em que o irmão era dominado pelo espírito, emanou do pequenino a aura esverdeada, está a qual não havia aparecido antes, os contornos de cada escama do abdômen e em outras partes aleatórias do corpo foram realçadas por linhas verde incandescente que lhe davam ares de possuído, seus olhos perderam o tradicional tom marrom das pupilas e deram lugar a um vermelho maléfico que fez Flame arrepiar-se e contrair a cauda.
O pequeno dragão escarlate começou a recuar, controlando o pânico que tentava dominá-lo, observando o irmão completamente tomado pelo ser malévolo.
‒ He-Helike, N-não brinca co-comigo!
Quando o jovem negro abriu a boca uma voz grossa e distorcida pronunciou-se ‒ Brincar? Quem brincou comigo foram vocês! Fizeram-me de fantoche esse tempo todo. Enganaram-me esse tempo todo, principalmente você, ‒ E imitando o método como Flame estava dirigindo-se a ele anteriormente ‒ dragão.
‒ He, sabes que era só para o teu bem. Nunca quisermos fazer você sofrer, pelo contrário fizer--
Basta! Não adianta tentar corrigir agora, irmão, Já está feito. Vocês me fizeram de bobo, de boneco de testes, esse tempo todo, agora vou dar-lhes o que vocês merecem!
E, fora, completamente, de si, Helike abriu as asas e foi levitado, por uma força inexistente à realidade deles. Após atingir certa altura ele começou a brilhar intensamente e uma esfera azul pálida de energia começou a crescer partindo de seu interior e logo o englobando e crescendo mais e mais.
Flame nesse momento já havia se rendido ao pânico e agora corria desesperadamente do local onde a fúria do irmão começou a manifestar-se. A energia que o irmão gerava já era tamanha que começara a criar um campo gravitacional envolta de si, desse modo pedras e outras coisas ainda maiores começaram a voar em direção a bola de energia que crescia atrás de Flame e eram impiedosamente tragadas pela energia macabra. Até mesmo o passo desesperado dele era prejudicado pela interação magnética que era gerada atrás dele.
No interior da esfera ceifadora que tomava forma, o ser que possuía o corpo do pobre dragão dominava, impedindo qualquer reação de seu hospedeiro, este o qual, de fato, não poderia, pois não tinha energia para nada. As duras palavras que o irmão lhe dissera, cutucara com força a besta dentro de si adormecida e ele lutou até o fim para impedi-la de acordar e agir. Lutara tanto que suas energias próprias desgastaram-se e tudo que restou foi a carcaça de seu corpo inerte, porém viva, para que o ser a dominasse.

Logo, com muito esforço, Flame alcançou seus pais, que já haviam notado que tinha algo de errado e, com perspicácia surpreendente, já contaram os anciões que vieram, todos, com máxima urgência onde eles moravam.
Todos olhavam para o horizonte, que era engolido pela esfera opaca e tentavam encontrar um meio de parar a fúria do jovem filhote, mas, como já esperavam, nada podia ser feito. Ao cutucarem a besta, encontraram o seu fim.
A esfera crescia a cada segundo mais, devorava, vagarosamente, Drunsgdom. Os anciões optaram por não alertar os habitantes de Linsgui, pois, como já estava a anoitecer, acharam melhor que fossem dissolvidos durantes os sonos, para evitar sofrimento.
Flame e seus pais optaram por aproximarem-se o máximo possível da esfera e serem dissolvidos juntos, e o mais próximo possível de Helike, O Dragão Negro de Chifres de Cristal Azul.
Junto a Drungsdom todo o passado de Helike, e de qualquer outro dragão que tenha vivido por lá, sumiu.
Exceto pelas lembranças que ele havia absorvido de seus pais, Flame e dos anciões, inconscientemente, enquanto sua fúria tragava o pequeno planeta.



Because this is me ₢ Helike Long

sábado, 30 de abril de 2011

VIII ‒ Esperanças

Dias prolongaram-se em semanas, que se estenderam para meses, que se transformaram em anos. Logo, Helike e Flame estariam completando dois anos, já que, como ninguém sabia a idade nem a data de nascimento do pequeno vermelho, decidiram que seria no mesmo dia e consideraram que ele tivesse a mesma idade que Helike.
Junto a esses dois anos, a harmonia e a união entre os irmãos atingiram um estágio avançadíssimo. Nem mesmo seus pais imaginavam que eles fossem ficar tão juntos, apesar de terem aspirado isso.
Outra questão que animava os pais era a de que, com os dois anos completos, os anciões poderiam tentar selar a criatura de Helike e assim poderiam voltar a ser a família que deixaram de ser por obrigação. A expectativa da resposta dos anciões e da possível restauração da unidade familiar Long, lhes consumia como fogo, mal conseguiam esperar.
Optaram, já no ano anterior, que ao menos no aniversário de Helike o tratariam bem, e ele, já notando que seus aniversários seriam únicos, aproveitava ao máximo.

‒ Hoje, junto aos dois anos que completas, temos um presente especial para ti, Helike. ‒ Disse a mãe entusiasmadamente.
‒ Sério?! Cadê? Cadê?
‒ Calma, calma, tudo ao seu tempo, filhote. ‒ Interrompeu o pai.
Encaminhavam-se para o centro de Lanshi enquanto conversavam animadamente. Helike nunca os questionava do porque agirem com ele como estavam agindo, preferia que isso perecesse no esquecimento, ao menos naqueles dias em que eles mudavam de comportamento.
Ao chegarem à praça central, dirigiram-se a uma pequena e rústica edificação, na qual dragões, extremamente abeis, teciam sutis e frágeis, porém, muitas vezes, trabalhavam tanto num mesmo pedaço de pano que conseguiam produzir cotas resistentes e majestosas. Para a surpresa não só de Helike, como também de seu irmão, seus pais haviam encomendado uma dessas cotas para ambos.
As vestes eram magníficas, ambas de um tom de marrom que lembrava o bronze polido. Ela cobria toda a extensão das costas, prendia nas coxas e nos antebraços para não ficarem esvoaçantes e, casualmente, atrapalharem o voo e finalizavam numa espécie de coleira clavada com uma grande pedra enfeitada. No caso de Helike a pedra era esverdeada com ramificações negras em toda a sua extenção. Já na de Flame a pedra era alaranjada com linhas azuis.
Ambos ficaram admirados com o presente e adiantaram-se em usar as cotas, essas as quais, tanto seus pais quanto os artesãos, não hesitaram em ajudar-los a vesti-las.
Helike nunca havia se sentido tão feliz antes, principalmente pelo fato de que essa cota seria um dos poucos meios de sentir o amor de seus pais após aquele dia.
‒ Muito obrigado pelo presente, papai e mamãe! Simplesmente adorei!
‒ Calma, pequeno, ainda tem mais. ‒ Eles carregavam a certeza de que o encantamento de selo surtiria efeito positivo e poderiam dar muito mais para o pequenino em breve.

Agora se encaminhavam para a construção mais elaborada de Lanshi, um símbolo da boa vontade dos dragões do vilarejo, já que arte não era a melhor habilidade dos dragões, reflexo disso eram as demais edificações, que, por sinal, eram poucas.
Esta edificação era o templo no qual os anciões encontravam-se e todos eram bem cientes disso, exceto Helike. Durante os tempos de maus tratos aos quais ele era obrigado a resistir, vez ou outra ele era deixado só no lar e seus parentes vinham encontrar os anciões para conselhos.
‒ Fiquem aqui por enquanto, logo voltaremos ‒ Disse a mãe e prosseguiu com o pai.
Em outra sala os dois encontraram o ancião chefe, o qual havia lhes aconselhado a tratar Helike como vinham tratando. Ele logo se pronunciou:
‒ Imagino que tenham vindo para tentar o encantamento sobre o jovem, não?
‒ Sim, justamente. ‒ Disseram juntos.
‒ Pois bem, façamo-lo sem demoras então. Apliquem o que lhes ensinei nele para que ele fique desacordado e tragam-no para cá.
Os Longs entreolharam-se com alguns instantes entristecidos por terem de fazer isso. Está bem, voltaremos em breve. Disseram, movidos pelo amor e pela esperança, e deixaram a sala.
Encontraram Helike e Flame numa animada brincadeira quando voltaram a sala em que os deixaram, com um sinal discreto fizeram com que o pequeno vermelho detraísse seu irmão para que pudessem desmaiá-lo.
Quando o jovem dragão já estava desacordado, eles aguardaram para que pudessem entrar, então ambos os três  se ajudaram para levá-lo até a presença dos anciões para dar-se inicio ao processo. A sala estava com uma iluminação enfraquecida e com marcas, das quais emanava um brilho azulado, por quase toda a parte. Além dos anciões, mais cinco dragões foram convocados para ajudarem no que fosse possível.
O ancião repousou sua visão sobre ele por alguns instantes e, então, com uma voz fria, ordenou: ‒ Arranquem-lhe as vestes!
Antes que pudessem protestar, os cinco dragões já haviam abstraído Helike de seus parentes e despiam-no impiedosamente, deixando apenas trapos da vestimenta refinada que ele ganhara a pouco. Flame aventurou-se a avançar e, com as presas, abocanhou a pedra que estava nas vestes do irmão.
Sem o menor pudor, lançaram o filhote para dentro de um circulo com inscrições estranhas, e este caiu com um baque abafado e, aos seus pais, que nada puderam fazer, doloroso.
Todos os anciões estavam presentes a cerimônia, formando um grande circulo escamoso ao redor do circulo onde encontrava-se o pequeno. Todos se elevaram sincronizadamente e, sem qualquer aviso, processaram o encantamento.
Todas as inscrições sobre as paredes ficaram mais intensas, mergulhando todos no azul fantasmagórico que elas produziam. O circulo em que Helike encontrava-se foi o que brilhou com maior intensidade, fazendo-o quase sumir por contra do brilho.
Alguns instantes após o inicio, uma cena mostrou que o feitiço estava realmente surtindo algum efeito: Helike levantou-se, aparentemente, fora de si, olhou para todos os lados até que repousou os olhos encobertos por um vermelho amedrontador e tentou avançar, mas, de algum modo, o circulo o prendeu e impediu-o de prosseguir. Após isso, ele lançou um rugido de pura dor e desmaiou novamente.
A cena foi horrenda, a mãe não parava de chorar, o pai consolava-a cabisbaixo, aparentemente, engolindo o choro e Flame, sentindo-se incapaz de fazer qualquer coisa, apenas agarrou a pedra que antes estava na túnica de seu irmão, encolhido, sofrendo com ele.
Muito tempo se passou, e muitos outros surtos como o primeiro repetiram-se, num momento a pedra que Flame abraçava também brilhou num verde cegante e, quando o brilho dissipou-se, tanto a pedra de sua cota quanto a pedra da antiga cota do irmão fundiram-se, misteriosamente,  formando um yin-yang laranja e verde com esferas, consecutivamente, azul e negra.
Quando o brilho das marcas que encobriam o cômodo enfraqueceu-se até quase tornar-se inexistente, Helike apareceu novamente com a mesma aparência que apresentara no episódio do conflito na Terra, contorcido de dor e, mesmo inconsciente, gemendo.
Sua mãe logo se lançou em prantos, como se sentisse a dor do filhote, seu cônjuge conteve-se ao máximo, mas as lagrimas logo rolaram por sua face, o mesmo refletiu ao seu pequeno irmão.
‒ Acreditamos que está feito. Entretanto, não poderão cessar os maus tratos tão já, po--
‒ Porque não podemos?!? ‒ Escandalizou o pai junto a Flame que não se conteve. ‒ O encantamento era justamente para que ele pudesse ser feliz, não para que continuasse sofrendo!
‒ Se me permitir continuar. ‒ Após os dois terem acalmado, ele calmamente prosseguiu ‒ Pois nunca fizemos isso antes, os outros filhotes suicidaram antes disso, pois não agüentaram a pressão, o Helike é o primeiro a resistir tanto e não sabemos se as palavras usadas foram as mais promissoras.
‒ Mas não há nenhum relato em toda a nossa história? – Elevou-se a mãe às lagrimas para questionar.
‒ Nenhum foi tão forte quanto ele para resistir.
Espantados pela extraordinária vontade de viver que Helike carregava, eles concordaram em permanecer com o regime por mais tempo, a fim de testar o encantamento, por mais que isso lhes doesse.
Aproximando-se do pequenino, que ainda estava desacordado e gemia de dor, o pai pegou-o com a mandíbula e retirou-se, junto aos outro, do local, despedindo-se dos anciões solenemente durante a saída.
Retornaram então amargurados para o lar, desapontados por tanto sofrimento dar lugar a ainda mais dor. O jovem dragão negro demorou algumas horas para voltar ao normal e mais o resto do dia para superar as dores.