Dias prolongaram-se em semanas, que se estenderam para meses, que se transformaram em anos. Logo, Helike e Flame estariam completando dois anos, já que, como ninguém sabia a idade nem a data de nascimento do pequeno vermelho, decidiram que seria no mesmo dia e consideraram que ele tivesse a mesma idade que Helike.
Junto a esses dois anos, a harmonia e a união entre os irmãos atingiram um estágio avançadíssimo. Nem mesmo seus pais imaginavam que eles fossem ficar tão juntos, apesar de terem aspirado isso.
Outra questão que animava os pais era a de que, com os dois anos completos, os anciões poderiam tentar selar a criatura de Helike e assim poderiam voltar a ser a família que deixaram de ser por obrigação. A expectativa da resposta dos anciões e da possível restauração da unidade familiar Long, lhes consumia como fogo, mal conseguiam esperar.
Optaram, já no ano anterior, que ao menos no aniversário de Helike o tratariam bem, e ele, já notando que seus aniversários seriam únicos, aproveitava ao máximo.
‒ Hoje, junto aos dois anos que completas, temos um presente especial para ti, Helike. ‒ Disse a mãe entusiasmadamente.
‒ Sério?! Cadê? Cadê?
‒ Calma, calma, tudo ao seu tempo, filhote. ‒ Interrompeu o pai.
Encaminhavam-se para o centro de Lanshi enquanto conversavam animadamente. Helike nunca os questionava do porque agirem com ele como estavam agindo, preferia que isso perecesse no esquecimento, ao menos naqueles dias em que eles mudavam de comportamento.
Ao chegarem à praça central, dirigiram-se a uma pequena e rústica edificação, na qual dragões, extremamente abeis, teciam sutis e frágeis, porém, muitas vezes, trabalhavam tanto num mesmo pedaço de pano que conseguiam produzir cotas resistentes e majestosas. Para a surpresa não só de Helike, como também de seu irmão, seus pais haviam encomendado uma dessas cotas para ambos.
As vestes eram magníficas, ambas de um tom de marrom que lembrava o bronze polido. Ela cobria toda a extensão das costas, prendia nas coxas e nos antebraços para não ficarem esvoaçantes e, casualmente, atrapalharem o voo e finalizavam numa espécie de coleira clavada com uma grande pedra enfeitada. No caso de Helike a pedra era esverdeada com ramificações negras em toda a sua extenção. Já na de Flame a pedra era alaranjada com linhas azuis.
Ambos ficaram admirados com o presente e adiantaram-se em usar as cotas, essas as quais, tanto seus pais quanto os artesãos, não hesitaram em ajudar-los a vesti-las.
Helike nunca havia se sentido tão feliz antes, principalmente pelo fato de que essa cota seria um dos poucos meios de sentir o amor de seus pais após aquele dia.
‒ Muito obrigado pelo presente, papai e mamãe! Simplesmente adorei!
‒ Calma, pequeno, ainda tem mais. ‒ Eles carregavam a certeza de que o encantamento de selo surtiria efeito positivo e poderiam dar muito mais para o pequenino em breve.
Agora se encaminhavam para a construção mais elaborada de Lanshi, um símbolo da boa vontade dos dragões do vilarejo, já que arte não era a melhor habilidade dos dragões, reflexo disso eram as demais edificações, que, por sinal, eram poucas.
Esta edificação era o templo no qual os anciões encontravam-se e todos eram bem cientes disso, exceto Helike. Durante os tempos de maus tratos aos quais ele era obrigado a resistir, vez ou outra ele era deixado só no lar e seus parentes vinham encontrar os anciões para conselhos.
‒ Fiquem aqui por enquanto, logo voltaremos ‒ Disse a mãe e prosseguiu com o pai.
Em outra sala os dois encontraram o ancião chefe, o qual havia lhes aconselhado a tratar Helike como vinham tratando. Ele logo se pronunciou:
‒ Imagino que tenham vindo para tentar o encantamento sobre o jovem, não?
‒ Sim, justamente. ‒ Disseram juntos.
‒ Pois bem, façamo-lo sem demoras então. Apliquem o que lhes ensinei nele para que ele fique desacordado e tragam-no para cá.
Os Longs entreolharam-se com alguns instantes entristecidos por terem de fazer isso. Está bem, voltaremos em breve. Disseram, movidos pelo amor e pela esperança, e deixaram a sala.
Encontraram Helike e Flame numa animada brincadeira quando voltaram a sala em que os deixaram, com um sinal discreto fizeram com que o pequeno vermelho detraísse seu irmão para que pudessem desmaiá-lo.
Quando o jovem dragão já estava desacordado, eles aguardaram para que pudessem entrar, então ambos os três se ajudaram para levá-lo até a presença dos anciões para dar-se inicio ao processo. A sala estava com uma iluminação enfraquecida e com marcas, das quais emanava um brilho azulado, por quase toda a parte. Além dos anciões, mais cinco dragões foram convocados para ajudarem no que fosse possível.
O ancião repousou sua visão sobre ele por alguns instantes e, então, com uma voz fria, ordenou: ‒ Arranquem-lhe as vestes!
Antes que pudessem protestar, os cinco dragões já haviam abstraído Helike de seus parentes e despiam-no impiedosamente, deixando apenas trapos da vestimenta refinada que ele ganhara a pouco. Flame aventurou-se a avançar e, com as presas, abocanhou a pedra que estava nas vestes do irmão.
Sem o menor pudor, lançaram o filhote para dentro de um circulo com inscrições estranhas, e este caiu com um baque abafado e, aos seus pais, que nada puderam fazer, doloroso.
Todos os anciões estavam presentes a cerimônia, formando um grande circulo escamoso ao redor do circulo onde encontrava-se o pequeno. Todos se elevaram sincronizadamente e, sem qualquer aviso, processaram o encantamento.
Todas as inscrições sobre as paredes ficaram mais intensas, mergulhando todos no azul fantasmagórico que elas produziam. O circulo em que Helike encontrava-se foi o que brilhou com maior intensidade, fazendo-o quase sumir por contra do brilho.
Alguns instantes após o inicio, uma cena mostrou que o feitiço estava realmente surtindo algum efeito: Helike levantou-se, aparentemente, fora de si, olhou para todos os lados até que repousou os olhos encobertos por um vermelho amedrontador e tentou avançar, mas, de algum modo, o circulo o prendeu e impediu-o de prosseguir. Após isso, ele lançou um rugido de pura dor e desmaiou novamente.
A cena foi horrenda, a mãe não parava de chorar, o pai consolava-a cabisbaixo, aparentemente, engolindo o choro e Flame, sentindo-se incapaz de fazer qualquer coisa, apenas agarrou a pedra que antes estava na túnica de seu irmão, encolhido, sofrendo com ele.
Muito tempo se passou, e muitos outros surtos como o primeiro repetiram-se, num momento a pedra que Flame abraçava também brilhou num verde cegante e, quando o brilho dissipou-se, tanto a pedra de sua cota quanto a pedra da antiga cota do irmão fundiram-se, misteriosamente, formando um yin-yang laranja e verde com esferas, consecutivamente, azul e negra.
Quando o brilho das marcas que encobriam o cômodo enfraqueceu-se até quase tornar-se inexistente, Helike apareceu novamente com a mesma aparência que apresentara no episódio do conflito na Terra, contorcido de dor e, mesmo inconsciente, gemendo.
Sua mãe logo se lançou em prantos, como se sentisse a dor do filhote, seu cônjuge conteve-se ao máximo, mas as lagrimas logo rolaram por sua face, o mesmo refletiu ao seu pequeno irmão.
‒ Acreditamos que está feito. Entretanto, não poderão cessar os maus tratos tão já, po--
‒ Porque não podemos?!? ‒ Escandalizou o pai junto a Flame que não se conteve. ‒ O encantamento era justamente para que ele pudesse ser feliz, não para que continuasse sofrendo!
‒ Se me permitir continuar. ‒ Após os dois terem acalmado, ele calmamente prosseguiu ‒ Pois nunca fizemos isso antes, os outros filhotes suicidaram antes disso, pois não agüentaram a pressão, o Helike é o primeiro a resistir tanto e não sabemos se as palavras usadas foram as mais promissoras.
‒ Mas não há nenhum relato em toda a nossa história? – Elevou-se a mãe às lagrimas para questionar.
‒ Nenhum foi tão forte quanto ele para resistir.
Espantados pela extraordinária vontade de viver que Helike carregava, eles concordaram em permanecer com o regime por mais tempo, a fim de testar o encantamento, por mais que isso lhes doesse.
Aproximando-se do pequenino, que ainda estava desacordado e gemia de dor, o pai pegou-o com a mandíbula e retirou-se, junto aos outro, do local, despedindo-se dos anciões solenemente durante a saída.
Retornaram então amargurados para o lar, desapontados por tanto sofrimento dar lugar a ainda mais dor. O jovem dragão negro demorou algumas horas para voltar ao normal e mais o resto do dia para superar as dores.